ALÉM DA TERCEIRA IDADE

 APRESENTAÇÃO

A longevidade do ser humano vai se prolongando. Previsões otimistas falam de uma terceira idade de cem ou mais anos. De qualquer maneira, a vida humana chegará ao fim. E depois? As respostas são muitas. Aqui se esboça uma delas. O otimismo cristão vê a morte não como o fim da vida e sim como inicio da Vida em plenitude (Jo 10, 10) que Jesus Cristo veio nos trazer.

 

ALÉM DA TERCEIRA IDADE

Quem não morre jovem, está fadado ao envelhecimento. Em outras palavras, passa da segunda para a terceira idade. E depois? Depois, mais cedo ou mais tarde advirá a morte. Morte, “castigo para alguns, presente para outros e um favor para mais outros” (Séneca). A morte era desejada também pelos Místicos que viam nela o arauto do iminente encontro com o Amado. Nem tem faltado quem olhe para a morte com uma pitada de humor. Como por exemplo Mario Benedetti. Após enumerar as divisões que a vida estabelece – crenças, cor da pele, dinheiro, etc., assinala a justeza da morte, que sem poupar ninguém, nivela aqueles que a vida colocou em patamares diferentes. “Ela é eclética, realista, social…, e continuará assim. A não ser que alguém invente de privatizá-la”. Enquanto isso não acontecer, todo vivente se confrontará com o enigma da morte.

Resposta da religião

Sejam lá quais forem as idades ou a idade do ser humano sobrea terra, chegará o momento em que passará a morar embaixo dela. Surge então a grande questão: e depois? Pode-se afirmar que a maioria dos seres humanos, agrupados em diversas religiões, acreditam na sobrevivência da alma. “Creio na ressurreição da carne”, reza o credo católico (art. 11). Nos cursos de teologia católica O Além ganha uma disciplina: Escatologia ou “De Novissimis” – sobre as realidades últimas (ultimíssimas).

O dogma católico é categórico. “A morte põe fim à vida do homem como tempo aberto ao acolhimento ou recusa da graça divina manifestada em Cristo” (Cat., n. 1021). O veredito desse “Juízo Particular” será céu ou inferno. A Igreja Católica estabelece uma terceira possibilidade: o Purgatório. Como o próprio termo indica, é um estágio de purgação ou purificação necessário, segundo os casos, para adentrar na visão beatífica. Se nos ativermos à mensagem revelada, tanto do AT como do NT, à Tradição e ao Magistério dos primeiros séculos do cristianismo constatamos que a doutrina sobre o Purgatório tem uma base assaz precária. Não estranharia, pois, que o purgatório tivesse o mesmo fim que teve o Limbo, suprimido pelo papa Beneditto XVI. Atrelada ao Purgatório está a doutrina das indulgências, atos piedosos e obras de caridade que os vivos podem fazer pelos seus defuntos. Em seguida as indulgencias começaram a ser administradas pela Igreja. Vieram então os abusos contra os quais se insurgiu a Reforma Protestante.

Alguns escritos hagiográficos comparam as penas do Purgatório com as do Inferno. Com uma diferença: as segundas são eternas, enquanto as primeiras temporais. Os infelizes a caminho para a eterna danação são recebidos com a mensagem escrita na porta da “cittá dolente: lasciate ogni speranza”.O Céu, o Inferno, e em parte também o Purgatório, povoaram o imaginário cristão durante o longo período medieval. O poeta Dante Aleghieri desenhou com a palavra escrita as belezas do Paraíso e os horrores do Inferno. O Catecismo católico aprofunda e expande a doutrina católica relativa ao além da terceira idade: “Cada homem recebe na sua alma imortal a retribuição eterna a partir da morte, … seja para entrar de imediato na felicidade do céu, seja para condenar-se de imediato para sempre” (n. 1022). Os teólogos da época dedicaram volumosos tratados à explicação e à difusão da doutrina católica. Os abusos cometidos pela Igreja católica, hegemônica na época, são bem conhecidos. No entanto, é preciso olhar também para as inúmeras obras de arte cuja criação e conservação são devidas à Igreja.

 

Resposta das Belas Artes

As inúmeras descobertas já na Idade Média, depois no Renascimento até chegar à Contemporaneidade, têm questionado muitas das “verdades” de outrora. Após a secularização das últimas décadas, a partir do Concilio Vaticano II, a ameaça do inferno não assusta tanto, nem a do Paraíso apresenta o glamour dos tempos pretéritos. O mito do casal Adão e Eva é visto como mais uma história infantil. No entanto, pensadores gabaritados se perguntam: “O que sobrou do Paraíso?”. Olhando, sob o prisma da arte, as obras primas produzidas pela inspiração religiosa, Delumeau faz a seguinte consideração:

A esperança cristã de uma eternidade de felicidade no além constitui, por si só, uma imensa questão, pois sustentou uma civilização inteira durante longuíssimo período. E o que não se diz suficientemente é que ela se exprimiu de maneira muitas vezes belíssima (p. 14).

Perenidade, beleza, intensidade é o que detecta o estudioso na produção artística de tema religioso. Lembremos que houve também na mesma época pensadores de alto nível no âmbito teo-filosófico. O mais renomado é S. Tomás de Aquino, sendo a Summa Theologicasua obra prima. Como obra literária da época onde o tema além da terceira idade tem relevância, está La Divina Comedia, de Dante Alighieri. Em época mais recente houve inúmeros escritores que se debruçaram sobre “a Bíblia como literatura”, onde a transcendência ocupa lugar destacado.

Céu ou Inferno, Céu e Inferno

O que tem ou não tem, o que vem ou não vem depois da terceira idade continua desafiando os pensadores, inclusive os de nosso tempo. É emblemático a respeito o pensamento de Borges. Ao constatar os diversos temas que aborda num dos seus escritos (Otras Inquisiciones, 1953), explica o porquê dessa tendência: “apreciar as ideias religiosas ou filosóficas pelo seu valor estético e até pelo que envolvem de singular e maravilhoso”, não pelo seu caráter de verdadeiras. Falando justamente das frequentes irrupções do escritor na transcendência, Emir Rodríguez Monegal, seu biógrafo literário, afirma que Borges era gnóstico (Borges por él mismo., p. 49). O crítico literário H. Bloom julga que o gnosticismo é a religião do “Gênio”, (gênio literário). Convém explicar que não se trata do Gnosticismo, movimento teo-filosóficoque surgiu nos primeiros séculos do cristianismo. Logo mais explica: “trata-se de um conhecimento que libera a mente criativa dos ditames da teologia, do historicismo e de qualquer divindade que se anteponha àquilo que existe de mais criativo no eu” (Gênio, p. 22).

Usufruindo justamente dessa liberdade própria do Gênio, Borges propõe uma visão do além que subverte a da teologia. Em um dos seus relatos curtos, Outro fragmento apócrifo,apresenta um jovem atormentado por um crime cometido faz tempo, conversando com o mestre. Além disso, ficamos sabendo que o mestre também é um pecador, que ninguém pode perdoar, nem mesmo Deus, e que “se os humanos fossem jugados segundo seus atos, não haveria nenhum que não merecesse o inferno E o céu”, (Los Conjurados, Obras III, p.489 -ênfase meu). Com a substituição de um conectivo, colocando E em vez de OU, o escritor subverte o ensino oficial e nos tira do eixo.

Outro ensinamento religioso que chama a atenção de Borges e contra o qual se insurge “literariamente” é a duração do inferno. A ele dedica um relato que aborda diretamente o tema, diferente de outros em que toca o aspecto religioso como que tangencialmente.Reconhece que a crença no inferno não é exclusiva da religião católica; mas isso não lhe resta importância. Afirma literalmente: “nenhum outro assunto da teologia tem para mim tanto interesse” (Obras completas, I, p.236). Ao indizível das penas, acresce o fato de serem eternas, para sempre. Serão? É isso condizente com a justiça e bondade divinas?

A resposta do escritor remete ao Condicionalismo, movimento espiritualista dos primeiros séculos do cristianismo (Pozo, p. 444). A eternidade da pena pressupõe a eternidade da alma. Ora, a eternidade é um dom de Deus para quem merece “a vida eterna”. Quem não merece, morre, deixa de existir. Borges questiona também a duração da pena, infinita porque a culpa atenta contra um Deus infinito. Este argumento é para Borges “um caso de leviandade escolástica”. Termina discutindo brevemente o papel desempenhado pelo livre arbítrio. “Há eternidade do céu e do inferno porque o livre arbítrio assim exige”. Ele vê nesta arguição uma força dramática. Encerra, porém, o relato com a seguinte confissão: “creio até na perpetuidade do inferno, mas também acredito que é uma irreligiosidade crer nele” (Obras, III p. 328).

 

Além da terceira idade, mediata ou imediatamente, advirá a vida eterna. Eternidade definida pelos teólogos como “posse total, simultânea e perfeita da vida” (“tota simul et perfecta viatae possessio”). Pretender conhecer algo mais, seria demais. A Igreja Católica declara: “O mistério de comunhão bem-aventurada com Deus (…) supera toda compreensão e toda imaginação” (Cat. 1027). Toda compreensão, de acordo; toda imaginação,nego. É verdade que o céu, o paraíso perderam o halo que já tiveram. O Paraíso passou a ser uma Utopia, um “não lugar” que contém a totalidade à qual aspira o cristão. Delumeau antes citado pergunta: “Poderíamos viver sem utopias”? (p. 508). Claro que não! Vivemos na esperança utópica de uma realização das bem-aventuranças: os famintos serão saciados, os tristes consolados… (Mt 5). Concluímos com a utopia de Ap (21, 25): os bem-aventurados viverão em convívio com Deus, “que enxugará as lágrimas de seus olhos. Não haverá mais choro nem dor”, coisas do passado.

 

Bibliografia

BORGES, J. L. Obras Completas, EMECÉ EDITORES, Barcelona 1989.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 6ª Edição, Loyola, Paulinas, Ave Maria,

1963.DELUMEAU, J. O que sobrou do paraíso? Traduçao Maria Lúzia Machado. Companhia Das Letras, São Paulo, 2003

MONEGAL, E. R. Borges por él mismo. Monte Avila Editores, Caracas 1980.

POZO, C. S. J. Teología del más allá – Historia Salutis, BAC, Madrid 1992.