O SER HUMANO E O MEDO

APRESENTAÇÃO

Retomo minhas visitas ao Blog depois de uma ausência, causada principalmente por problemas de saúde. O tema tratado é O MEDO. Curiosamente os medos do s. XXI não diferem muito do pânico que tomara conta dos habitantes da Europa Medieval. O bem ameaçado é também a vida, bem supremo do ser humano. Neste primeiro texto se aborda o tema de maneira geral, nos seguintes se abordarão temas específicos. 

O SER HUMANO E O MEDO

MEDO: indagando o significado

A consulta ao dicionário nos dará uma ideia geral de MEDO: é o estado afetivo causado pela consciência de perigo. No linguajar do dia-a-dia medo é o temor, a ansiedade irracional ou fundamentada. Entra também no âmbito do medo o provocado por uma visão aterradora, por uma alma de outro mundo ou por um fantasma, campo religioso ou sobrenatural. Vejamos a definição clássica ou tradicional; aquela que inclui o género próximo e a diferença específica da prescrição aristotélica:

Metus: Instantis vel futuri periculi casusa mentis trepidatio.

Tradução: perturbação do ânimo/ da mente, causada por um perigo ou risco que nos ameaça ou que receamos.

Essa “mentis trepidatio” pode ter outra ou outras traduções. Mas sempre será uma alteração mental sofrida por um ser humano e causada “por um perigo ou risco”. Este pode ser real, neste instante, hinc et nunc, ou sentido como tal, sem chegar a uma materialização. Metus, singular, mesmo se os que o experimentam são muitos. É também possível que uma e a mesma pessoa experimente diversos medos.

Desde já podemos observar que não se trata de um item unívoco, mas “plurívoco”,  ambiguo. É também ubíquo; se pode encontrar em diversas atividades do ser humano. O medo ou a intimidação pode anular qualquer ato onde se supõe um consenso plenamente livre. 

MEDO: macro tema da história ocidental.

Apesar de sua importância na vida individual e social das pessoas e dos povos, o medo rara vez foi objeto de investigação científica. As exceções foram George Lefebvre com o livro Le Grande Peur – que aparece em 1932, e Lucien Fevbre Anales, artigo publicado em 1956. A eles se junta Jean Delumeau um de cujos livros de vários centos de páginas é: A história do medo no Ocidente. Porém, ele gostaria de não ser visto apenas como “Historiador do medo”. Seu interesse abrange também os temas de Segurança e Felicidade, cada um dos quais foi objeto de um livro de fôlego,  resultado de vinte anos de pesquisa.

A obra de Delumeau começa se perguntando em a História do Medo em Ocidente por que esse silêncio sobre o medo, sendo o mesmo algo incontornável na história do ser humano. “Sem dúvida, devido a uma confusão mental amplamente difundida entre medo e covardia, coragem e temeridade”, responde ele mesmo (p. 14). É essa a época dos livros de cavalheria. “É preciso que se fale do cavalheiro por causa de suas bravuras guerreiras. Adquire-se mais honra arriscando a vida em combates desiguais” (p. 18). Dentre os romances que circulavam pela Europa, traduzidos quando necessário, estavam o Amadis de Gaule, herói “que faz tremer os mais cruéis animais selvagens”; Orlando furioso, de Ariosto, a Gerusaleme liberata de Tasso. Em espanhol está Dom Quixote, de Cervantes. Nele a temeridade do Cavalheiro se opõe à covardia do seu servo Sancho Pança, a quem “o medo faz distorcer tudo o que vê e ouve”. Esses exemplos, dentre muitos mais que se poderiam aduzir, justificam a conclusão de Delumeau: “Este discurso da coragem e do medo era uma justificação do poder dos dominantes sobre a massa de pobres” (p. 19).

 “O medo é natural” (p. 23). O pesquisador vê nele um “componente maior da experiência humana”. A seguir aduz opiniões de pessoas de diversas profissões que balizam sua afirmação. Uma delas é a de Marc Oraison: “o homem é por excelência o ser que tem medo”. O pesquisador francês acharia mais significativo que Freud colocasse o medo no lugar que dá à libido. “Pena ele não ter levado a análise da angustia e de suas formas patogênicas até o enraizamento na necessidade de conservação ameaçado pela previsão da morte. A principal pulsão não é a libido, mas a necessidade de segurança ” (p. 22).

Já se falou do medo humano e dos diversos significados que assume, diferente do medo do animalcujo medo é uno e único: a morte.O animal, todos os animais têm medo da morte; a temem e a evitam quando são ameaçados. O ser humano, no entanto, sabe que vai morrer, em certa maneira antecipa a morte e sofre por isso. Daí as múltiplas manifestações do medo humano, os diversos “medos do homem”. O medo “racional” tem muito a ver com o instinto de conservação. Graças a ele escapamos muitas vezes dos perigos que supõe viver, adiando dessa maneira a morte. “Mas se ele ultrapassa uma dose suportável, torna-se patológico e cria bloqueios. Podemos morrer de medo ou ao menos sermos paralisados por ele” (p. 23).

É importante a opinião do médico e padre católico Marc Oraison, citado por Delumeau para assinalar a atuação do medo no campo religioso. “A regressão através do medo é o perigo que espreita constantemente, o sentimento religioso” (p. 23). É justamente o campo onde o medo se manifesta com maior frequência uma vez que se lida com o desconhecido, o misterioso, “O totalmente outro” (R. Otto).

As pandemias e o medo coletivo

“Quando o medo é coletivo, ele pode conduzir a comportamentos absurdos e suicidas, a partir dos quais a apreciação correta da realidade desapareceu”. Segundo Delumeau foram esses os fatos que levaram à derrota da França pela Prússia (p. 24). Aproximando-se mais do nosso tempo o autor cita Alfred Sauvy: “onde tudo é incerto e onde o interesse está constantemente em jogo, o medo é continuo.” Exemplos: “a quinta feira negra, 24 out. 1929, depreciação dos bilhetes de Banco, Revolução Francesa, a queda do Banco na Alemanha, 1922. Em todos estes casos houve pânico irrefletido por contagio de um verdadeiro medo do vazio. O elemento psicológico, isto é, a loucura extrapolou a análise da conjuntura. Fica por esclarecer se as causas da violência humana são antropológicas ou sociológicas, ou se existe no homem um instinto destruidor primário” (p. 24).

Aproximando-nos mais do presente estão os perigos que nos ameaçam: armas modernas, terrorismo, poluição, etc. As armas de fogo estavam já na primeira guerra mundial e na segunda apareceu e foi usada a bomba nuclear. O número de vitimas aumentou exponencialmente: 40 milhões de mortos no segundo conflito! Os perigos vindos da natureza – poluição, tsunamis, exploração do subsolo, etc.- são, sem comparação, menos graves que os causados pelo homem.

                  O medo na religião, o que a Bíblia diz a respeito, a aparição do Mestre que aparece e assusta os seus Discípulos e em seguida os tranquiliza, etc. Alguns temas são muito polêmicos, por exemplo, a Inquisição, onde a intimidação era o meio comum para arrancar a confissão das vítimas. Sem falar da instalação desse Tribunal no Novo Mundo e as execuções que fez simultaneamente à evangelização. Continuaremos, pois, a nos encontrar, tentando trazer à tona nossos medos e dando-lhes o lugar que lhes corresponda.

Conclusão

As pandemias que aterrorizaram a Europa principalmente entre os séculos XIV e XVII pareciam tristes lembranças do passado. No entanto, a aparição do Covid-19 com um saldo altíssimo de vítimas mostrou que nossos progressos sequer conseguiram proteger o que temos de mais valioso, a vida. Os progressos maravilhosos (e espantosos) dos últimos séculos não garantem aos seres humanos uma vida harmoniosa, em paz e saudável. Eis a chance de reverter o homo homini lúpus, em homo homini frater.  

Livros consultados

DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente. Companhia de Bolso, São Paudo, 2009. Tradução de Maria Lucia Machado e Heloisa Jahn.

AA. VV. MultiTextos CTCH, O Medo no Ocidente. Ano 0 – n, 03- 206. PUC – Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, RJ.

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